quarta-feira, 22 de junho de 2011

Amor, desejo e gozo: o narcisismo



Pode haver maior mal que o de em nossa própria casa nos não sentirmos bem?
Santa Teresa d'Ávila - Moradas


Sob o século, não do iluminismo, mas das luzes, excesso de luzes, vivemos sem nenhum paradoxo, tempos sombrios. O excesso de iluminação produz quando não o ofuscamento, zonas escuras, sombrias e propícias ao desaparecimento. Os pintores sempre souberam disso, ao menos a partir de Rembrandt. Se você quer iluminar um objeto trate de lhe fazer sombra ao redor. Luz e sombra. Seres anônimos que vão e vem sem que os notemos na pressa desenfreada da cidade. A cidade engole sujeitos e cospe seres-objetos, quase dejetos que produzem enlouquecidamente para manter o discurso capitalista funcionando. Esta compulsão quase escravocrata em produzir coisas desfigura rostos e os sujeitos desfiguram-se em paisagens sem contornos, nebulosas. 
Daí o contraponto da necessidade imperiosa de se fazer-aparecer. Os tais 15 minutos de fama de Andy Warhol. Tudo torna-se fluido, escorregadio e metonímico. Não se faz laços profundos, não se produz sustentação, vínculos duradouros, raízes ou lastros culturais.
Vivemos uma globalização das relações? Isenções de fronteiras alfandegárias onde não precisamos dizer o que queremos, ou seja, falta ética onde o que se diz não é lá muito bem o que se faz.
Junto ao nascimento do mito de Narciso surge uma pergunta que sua mãe faz (como toda mãe zelosa) se o seu filho será feliz e se viverá muito. E a resposta do oráculo foi: "Se não se conhecer". Estranho paradoxo: a busca pelo conhecimento causa sofrimento e dor? O sujeito pensa habitar seu eu, mas a função em que ele se  encontra e se estarrece por esta descoberta, é de desconhecimento do próprio eu. Ali onde o sujeito acha que encontrará abrigo, surge o desamparo como um perigo real que ameaça a establidade do sujeito. Lacan, no Observação sobre o relatório de Daniel Lagache (Escritos) diz que "uma desestabilização no imaginário, produz uma ruptura no simbólico fazendo emergir o real". O real é o impossível de dizer. E é do real que advém o sintoma. Então, o que há de impossibilidade no amor que não se chega a dizer? Por que o amor é o impossível de dizer, embora seja preciso, imperioso dizê-lo? O que não cessa de não se inscrever na esfera amorosa?
Fascinado pela própria imagem, o destino de Narciso está selado pela necessidade imperiosa de uma 'saciedade do espetáculo' que vê refletido na imagem do lago. Hoje há olhos por toda parte numa grande pletora de visores: máquinas que nos espelham a aparência. Emboscada. Engano da aparência sobre a essência. A consistência do imaginário produz uma ilusão de completude. Os objetos, gadgets do desejo, obliteram diferenças e globalizam subjetividades.
A quem ama hoje o neurótico?
Freud, desde seu texto sobre o Narcisismo, afirma que o amor é no fundo amor por si mesmo. O que o sujeito busca no Outro é o que lhe falta. Velho aforisma platônico. Aliás, desde a introdução ao seus "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", Freud diz que o eros ao qual ele se refere é o do "divino Platão". Amar ao outro para procurar respostas para si não é uma espécie de egoísmo? Pois se o amor é amor ao próprio eu (ego), o que o sujeito mais quer é buscar no outro um amor para si. Mas é Lacan que nos avisa através de Platão sobre a báscula que o amor deve ter. Que aquele que ama (o amante) deva por sua vez tornar-se o amado. Mas não só. O amor é também dar o que não se tem a quem não é. Pra que rimar amor e dor? enuncia Caetano.
O que é que engana o sujeito? Não é a angústia, pois este é um afeto que não engana. Seria o amor como a literatura? Mistério que não se desvenda? Enigma que não se diz todo? Não-todo? Não-toda? Mas que continua a causar o desejo como uma espécie de mola propulsora universal? É preciso que se diga o amor, mesmo que seja impreciso. Viver e amar não é preciso. Não é, F. Pessoa? Mas, sim. É preciso dizê-lo, dizer o amor, mas sem esquecer que é impossível dizê-lo todo. Por isso as cartas de amor são ridículas, pois supõe dizer tudo. O amor quer chegar ao Um. O delírio de ciúme é a crença de que isso seja possível.
Ovídio (42 a.C.-18 d.C.), o poeta de As Metamorfoses, nos ensina sobre Narciso: "Enquanto bebe, arrebatado pela imagem de sua beleza que vê, apaixona-se por um reflexo sem substância, toma por corpo o que não passa de uma sombra. (...) Não sabe o que vê; mas o que vê o inflama, e o mesmo erro que ilude seus olhos lhe excita o desejo." Aí está. O que ilude os olhos excita o desejo. Quer dizer que se não iludisse não excitaria? Com certeza. Nada pior do que a previsibilidade para o amor. Causa fastio. Adormece os amantes e causa a detumescência do desejo.
Erro, engano, ilusão. Talvez possa residir aí o brilho imagético que ofusca a modernidade. Fascinados pela tirania de ter, os sujeitos anestesiados sossobram diante de uma dupla exigência da civilização: por um lado, a velha renúncia pulsional freudiana (ver em Mal-Estar na Civilização) e, por outro, a imperiosa obrigação em ter que ser feliz. Vivemos sob a égide de uma ditadura da felicidade, uma vontade de gozo sadiana de termos que ter uma euforia perpétua. Isso leva a uma tristeza/depressão e uma patologização do eu. Associa-se com frequência sucesso com a felicidade e tristeza com fracasso. Como se não fizesse parte da estrutura do humano também poder ser triste. Por outro lado, esta armadilha imaginária do eu, esta necessidade de estar sempre feliz é a alegria da indústria dos psicofármacos que prometem felicidade já. Milagre químico via propaganda enganosa que abate o desejo, mortificando-o na raiz de sua causa. Muitas vezes a medicalização torna-se necessária, mas daí a prometer felicidade é outra história. Até Woody Allen ironizou os benefícios da euforia do Prozac. (Manhattan). É a cena em que ele sai do táxi e a bela mulher que fica no carro pergunta pelo seu nome. Ao que ele sorrindo forçado responde: - Prozac. My name is Prozac.
O amor clama por um signo (aquilo que representa algo para alguém) que lhe oriente a vida. Que produza sentido. Mas, com tantos estímulos, será que estamos preparados para, ao mesmo tempo em que vemos tudo, numa espécie de panóptico voyeurístico, podermos ter a maior liberdade de nossas vidas que é a liberdade de escolher? Não é preciso que se renuncie ao gozo do todo para poder desejar? É a isso que Freud chamava de castração: poder amar o que se deseja e desejar o que se ama. Não-todo. Não-tudo. Não-toda.
O amor não deveria aprisionar, mas cuidado, ele também não sabe disso e frequentemente se ilude achando que dois são um só. Pobre Narciso. Vive só, a ilusão de ser dois.
(continua)

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Escritos sobre o amor, desejo e gozo - Introdução

 
Escher

 Odilon Redon 

"O amor é um grande laço, um passo pr'uma armadilha." Djavan

A porta de entrada da psicanálise foi através do amor. No início era a escrita freudiana. Não era cuneiforme, mas já impunha suas marcas em alcovas ainda não exploradas. Sigmund Freud inventou um inédito tratamento através da palavra. Mas, teria inventado a psicanálise se não houvessem as histéricas para lhes supor um saber? A palavra só teve o estatuto de viabilidade de tratamento através do momento em que Freud não abdicou do lugar de escutar o que suas pacientes diziam num instável mais-além das palavras. Ali, no coração da dor e dos semblantes obscuros da loucura, quando todos pareciam voltar-lhes as costas ou, o que era pior, quando a prática médica consistia no isolamento manicomial como tratamento possível à indesejável loucura, Freud inquietou-se em sua escuta para tentar decifrar o insondável e o indizível do desejo inconsciente. A não ser através da literatura, a palavra ainda não havia encontrado lugar tão importante na economia libidinal dos sujeitos. O amor encontrava na palavra não apenas uma possibilidade de significação, mas principalmente, a ressonância ao seu clamor de ser escutado. Surge também o desejo do analista como contraponto ao amor dos pacientes. 
Então, se a porta de entrada foi através do amor, é porque foi um amor ao saber. O verbo que se fazia carne recebia o nome de somatização. O corpo erógeno deslocou-se de lugar ganhando eine andere shauplatz, uma outra cena diferente daquela que até então se conhecia. O palco do corpo como espetáculo para o teatro histérico precisava não de uma plateia, mas de uma escuta. Assim, deslocava-se também a modalidade do olhar médico sobre "o corpo dos volumes e das formas" (Bichat), para a escuta da palavra que em seus tropeços e vagidos da memória intermitente, jorrava luzes difusas sobre um corpo sofrido, apaixonado em seu pathos: o corpo pulsional. 
O desejo inconsciente revelado na interpretação de sonhos, mostrou a Freud uma outra realidade, a única verdadeiramente a lhe interessar: a realidade psíquica. Se o amor e seus laços tinha sido a porta de entrada, o desejo era a estrada a ser percorrida. Originalmente recalcado, o desejo suscitaria no primeiro analista um esforço para não esmorecer diante de sua descoberta inaugural. Assim, ele afirmou sobre o perigo de "ceder-se primeiro em palavras, depois em ideias". E havia um longo caminho, sua Via Régia, para ser percorrida. Não bastava ter descoberto o desejo. As armadilhas que o desejo apresentava, edificava barreiras para o jovem Freud. A angústia, termo de suas primeiras descobertas, ganhava aos poucos uma importância central em sua teoria advinda da clínica. A "impossibilidade de se traduzir a emoção em palavras" dava ao corpo o sofrimento não escoado pala palavra: angústia. No fim e ao cabo, angústia de castração.
Para avançarmos até o momento em que queremos nos situar, Lacan, em seu retorno a Freud, dá ao termo gozo a vicissitude necessária para repensarmos o amor e o desejo. A frase de Lacan é: “só o amor permite ao gozo condescender ao desejo” (1962-63:197) O seminário, livro 10, A angústia. 
Por que o gozo, uma espécie de espiral infinda de prazer+sofrimento, que não se submete a nenhuma lei, pode, através do amor, fazer alguma concessão ao desejo?

"O amor e a agonia cerraram fogo no espaço
Brigando horas a fio, o cio vence o cansaço
E o coração de quem ama fica faltando um pedaço
Que nem a lua minguando, que nem o meu nos seus braços." Djavan
 

Continua.